quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Azul e rosa

Foi paixão à primeira vista.

Tão logo vi aquele vestido nas mãos da professora, que o mostrava para minha mãe, eu o desejei ardentemente.

- É o vestido da Fada Azul, a professora explicou. Algumas das meninas o usarão na apresentação de fim de ano.

Seria eu uma Fada Azul? Não perguntei no momento, portanto fui pra casa apenas com uma esperança.

O vestido era de um azul que eu nunca tinha visto antes, e nem depois. Não era claro, nem escuro. Era um azul perfeito, que me fazia querer mergulhar no tecido. Se Deus inventou o azul, era aquele. O resto seria apenas uma variação.

Do corpete brilhante saíam várias camadas da saia de tule e mangas compridas bufantes e transparentes, tudo isso salpicado de inúmeras lantejoulas pratas, que enchiam de brilho a roupa da fada.

Para completar, um chapéu em forma de cone com um véu na ponta e uma varinha de condão toda prateada, com direito até a estrela, e com exceção das lantejoulas e da varinha, o que reinava era o meu ideal de azul.

Por várias noites sonhei com aquele vestido, ansiosa por saber se iria ou não usá-lo. E finalmente soube que sim.

No grande dia, não me sentia apenas uma fada, mas uma verdadeira princesa. Talvez até mesmo uma rainha. Olhava-me no espelho com os olhos brilhando, rodando as saias de um lado para o outro. Meu pai me pediu para subir na cama coberta por lençóis brancos e ficar de costas para a parede também branca. Tirou uma foto que guardo com carinho não só na gaveta como também na memória: eu naquele cenário branco, vestida de Fada Azul, erguendo minha varinha mágica.

Com o passar dos anos, a foto foi adquirindo um tom rosado nas pontas que antes eram brancas por causa do cenário. Algum químico pode explicar essa mudança na coloração, mas pra mim é apenas efeito da magia.

O gosto do açúcar

Algo além do fato de eu ser filha do filho dele nos unia: o açúcar.

Meu avô foi o único adulto que conheci capaz de quebrar a regra inventada para tornar a vida das crianças mais chata, aquela de que não se pode comer doce antes do almoço ou da janta. Qualquer alimento que contivesse açúcar era sempre bem vindo para ele, independentemente da hora. E em sua companhia eu podia me beneficiar dessa transgressão.

Lembro-me das caixas de chocolate, dos bombons recheados com cereja, das bolachas waffle cobertas de chocolate que ele comprava no armazém da esquina, da maria-mole branca ou colorida feita por minha avó, das tortas de maçã que a gente levava de presente pra ele com muito, mas muito chantilly. Não importava que o alimento já fosse doce, meu avô sempre dava um jeito de deixá-lo ainda mais melado. E tudo isso regado a muito guaraná. Sempre doce em cima de doce e mais e mais doce.

No entanto, é o açúcar refinado que mais ficou em minha memória. Aquele pó branco brilhante adquiria um aspecto mágico em suas mãos.

Eu costumava passar parte das férias em sua casa e durante todo o dia esperava ansiosamente ele chegar do trabalho. Às seis da tarde eu já ficava de plantão e podia ver quando o carro embicava na garagem. Meu avô descia e me colocava de cavalinho em suas costas e lá íamos nós lavar as mãos para mais um ritual. Com as mãos limpas, ele tirava da geladeira dois potinhos de iogurte natural, alimento sem graça para uma criança e também para meu avô, abria cada um deles cuidadosamente e aos poucos ia acrescentando açúcar ao iogurte, que quase chegava a ficar sólido.

Eu observava a tudo atentamente e gostava de ouvir o barulhinho que a colher fazia ao mexer o iogurte cheio de açúcar. E aquilo para meu avô parecia sagrado, tamanha a atenção que ele dispensava à atividade.

Quando o doce ficava no ponto, ele me esticava um dos potes e nós comíamos aquele iogurte rindo um para o outro. E ríamos mais ainda caso minha avó reclamasse que aquela não era hora de comermos doce. Ela não podia entender que para um avô e uma neta toda hora era doce.
Depois que ele partiu os doces não perderam a magia pra mim, mas o iogurte misturado ao açúcar eu nunca mais pude provar.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Abigail*

Era uma vez um reino muito distante e numa bela manhã de inverno nasceu uma linda princesinha. O rei e a rainha estavam muito felizes com o nascimento da adorada menininha e resolveram chamá-la de Abigail.

No dia em que Abigail nasceu tudo o que se podia ver através das janelas do castelo eram os campos cobertos de neve, mas os corações dos pais da bela princesa queimavam de tanto amor.

Mas nem todos no reino estavam felizes nesse dia. No momento em que a rainha ia segurar sua filhinha pela primeira vez, a abominável Malvina entrou pelo quarto, soltando uma de suas risadas estridentes, e disse:

- Eu avisei, minha cara rainha, que você nunca seria feliz com esse rei e hoje estou aqui para cumprir minha promessa. Seus corações podem arder de alegria nesse momento, mas eu condeno a pequena Abigail a viver, para todo o sempre, com um coração de gelo, tão frio quanto a neve que podemos avistar lá fora. E toda vez que esse coração ficar triste, ele derreterá aos poucos, como a neve na primavera, e nossa pequena Abigail morrerá triste e lentamente.

E assim como veio, Malvina foi embora.

A rainha nesse momento derramou todo o seu pranto. Quando jovem, Malvina era uma bela moça e disputou com a rainha o coração do rei, mas como esse não a escolheu, ela jurou que nunca deixaria os dois serem felizes. Era chegado o momento da vingança.

Passado o desespero, os pais da princesinha mandaram buscar a bondosa Osmilda, fada-madrinha de Abigail, pois era preciso agir.

Osmilda chegou esbaforida no seu vestido de seda verde. Rodopiou por todo o quarto com sua varinha, dizendo palavras mágicas que pudessem quebrar o feitiço de Malvina, mas parece que todo esse esforço foi em vão. Quando colocavam a mão sobre o peito da princesinha, o coração continuava gelado.

- Enquanto não descobrirmos o remédio, o jeito vai ser cuidar muito bem desse coraçãozinho, disse Osmilda, e tenham a certeza de que eu estarei sempre por perto. E depois de beijar as faces brancas de Abigail, Osmilda saiu dando piruetas pelo ar.

O rei e a rainha resolveram que a partir daquele dia Abigail não poderia sofrer nenhuma decepção, mas para que isso acontecesse, ela nunca poderia ultrapassar os muros do castelo. Ordens expressas foram dadas aos guardas que vigiavam todas as saídas: Abigail nunca, jamais, poderia sair de lá. E todos fariam o possível e o impossível para que ela fosse sempre feliz.

E assim Abigail cresceu. Todos os seus desejos eram realizados: se ela queria comer morangos gigantes cultivados no distante Reino das Frutas, o rei ordenava que alguém fosse buscá-los. Se ela queria um céu estrelado, a rainha ordenava que todas as fadas do reino iluminassem o céu escuro com suas varinhas.

No seu aniversário de cinco anos, Abigail queria usar um vestido com as cores do arco-íris feito por bichos da seda que habitavam o longínquo Reino dos Bichos e assim foi feito. Quando chovia e Abigail queria brincar nos campos do castelo, a fada Osmilda cobria o céu com imensos guarda-chuvas coloridos e nenhuma gota d’água atrapalhava a brincadeira da princesinha.

Mas o tempo foi passando, passando, e Abigail, agora uma bela moça com lindos cabelos negros cacheados, começou a se interessar pelo outro lado do muro do castelo. A vontade de saber o que havia escondido lá era tão grande que ela não conseguia pensar em outra coisa. Mas para cada um que ela perguntava, ouvia um “não há nada do outro lado” como resposta. Se não havia nada, por que ela não poderia ver?, ela se questionava.

Um dia, então, ela decidiu que iria ultrapassar os muros do castelo, a qualquer custo. Na hora do lanche dos guardas, ela se ofereceu para entregar-lhes os copos com suco de tutti frutti e despejou em cada um deles quantidades enormes de sonífero. Assim que a noite caiu, enquanto os guardas roncavam, Abigail desceu pela janela de seu quarto e muito cuidadosamente ultrapassou os muros que guardavam um segredo do outro lado.

Era a primeira vez que Abigail se via sozinha em algum lugar e, assustada, resolveu esperar embaixo de uma acolhedora árvore que o dia clareasse.

Com os primeiros raios de sol, Abigail se pôs a andar. Ficou maravilhada com o que viu: campos verdes com lindas flores e árvores frondosas. O céu parecia até mais azul do lado de fora. Ao longe Abigail pôde avistar um conjunto de pequeninas casas e resolveu que iria até lá.

No caminho, porém, Abigail foi detida pelo mais belo canto que jamais havia ouvido. A bela princesa gostava muito de música e para contentá-la seus pais traziam para o castelo cantores e cantoras de todos os lugares do mundo, uma voz mais bela que a outra, mas nada se comparava à que ela ouvia agora.

A jovem ficou hipnotizada, mas não conseguia descobrir de onde vinha aquele canto. Apurou bem os ouvidos e viu, no alto de uma árvore, o dono daquela linda voz: um enorme pássaro de penas negras brilhantes e olhos dourados que mais pareciam duas estrelas.

Abigail se apaixonou pelo pássaro e não sabia como fazer para tê-lo junto de si. O que ela também não sabia é que o rei e a rainha, ao notarem pela manhã o sumiço da filha, colocaram todos os guardas do reino e também dos reinos vizinhos à sua procura. E bem no momento em que Abigail admirava o pássaro no alto da árvore os guardas chegaram. A princesa olhou para os guardas se aproximando e disse:

- Peguem esse pássaro. Agora!

Um dos guardas, no mesmo segundo, jogou por cima do pobre animal uma grande rede, da qual o bichinho não conseguiu se desvencilhar. E assim Abigail voltou para o castelo: seguida pelos guardas e carregando seu mais novo bibelô.

O rei a rainha estavam furiosos com a fuga da filha, mas quando a viram voltando sã e salva, apenas correram abraçá-la. Nenhuma palavra foi dita.

Abigail, então, que nunca soube o que era uma bronca, mostrou para os pais sua mais nova aquisição: um belo pássaro dono de uma linda voz.

A princesa pediu uma gaiola e logo seu desejo foi atendido. O bichinho assustado foi colocado lá dentro e Abigail disse:

- Cante!

Mas nem um piu foi ouvido.

- Cante!, Abigail disse mais alto.

E nada.

- Cante, agora!, Abigail já disse esbravejando e roxa de raiva.


Os pais da princesa, preocupados com essa emoção toda, convidaram a filha para um lanche e sugeriram que voltassem para o pássaro no dia seguinte.

Logo pela manhã, Abigail correu para a gaiola e ordenou que o pássaro cantasse novamente, mas ele nem se mexeu.

Furiosa com aquela desobediência, a bela princesa chamou os guardas e disse:


- Matem esse pássaro. Já!


O pobre animal arregalou seus olhos dourados que agora já não brilhavam mais como as estrelas. Os guardas não acreditavam na crueldade da princesa, mas tinham que obedecer às suas ordens.

Abriram a porta da gaiola, pegaram o bichinho assustado e quando iam lhe desferir um golpe certeiro na cabecinha negra, uma lágrima clara escorreu de seus olhos dourados.

Abigail, que assistia à cena impassível, no instante em que viu a lágrima, num reflexo colocou suas mãos sobre o bichinho. Abigail nunca tinha chorado na vida e era a primeira vez que via uma lágrima cair tão silenciosamente.

E enquanto suas mãos tocavam as penas negras sedosas, um calor passou a tomar conta do corpo de Abigail e a princesa começou a sentir algo palpitando em seu peito, mas uma palpitação tão forte que a jovem se pôs a chorar de medo. Parecia que ia explodir.

O rei e a rainha, ao escutarem o choro da filha, correram desesperados para tentar impedir que aquilo acontecesse, mas agora já era tarde demais.

Colocaram suas mãos sobre o peito da princesa, a fim de descobrir se o coraçãozinho de gelo estava mesmo derretendo, mas o que sentiram foi um forte, grande e quente coração pulando de emoção. Abigail agora já chorava de emoção, pois pela primeira vez sentia-se realmente viva, e achava que não havia melhor sensação do que esta que ora sentia.

A princesa, com os olhos banhados em lágrimas, tirou suas mãos de cima do pobre passarinho e disse:

- Vá!

O belo animal imediatamente voou o mais alto que pôde, a ponto de sumir da vista de todos. Abigail não pôde deixar de sentir uma certa tristeza ao ver o pássaro partindo, mas sabia, do fundo do seu coração agora quente, que ele não lhe pertencia.

Osmilda, que a tudo assistiu, consolou sua querida afilhada e mostrou-se a mais orgulhosa de todas as fadas-madrinhas. Na hora de partir, rodopiou por todo o reino e ao som de suas palavras mágicas os tijolos do muro do castelo foram caindo um a um. Abigail agora estava livre para conhecer o outro lado. Todos os lados que desejasse.

No dia seguinte, quando Abigail faria seu primeiro passeio de verdade, a princesa acordou com o canto do pássaro, antes mesmo do raiar do sol. Ficara tão apaixonada por aquele som que até sonhava com ele, pensou. Mas ao abrir bem os olhos pôde ver, ali na sua janela, o lindo animal com seus olhos de estrelas brilhantes cantando apenas para ela. Ao terminar sua bela canção, voou novamente até sumir. Mas voltou no dia seguinte, e no seguinte e no seguinte e no seguinte e sempre.


* exercício de conto de fadas.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Delírio

A luz entrou muito lentamente.

Uma voz ao longe dizia “vó” e parecia me chamar, mas eu não sei se tive netos. Ah, sim, estou me lembrando: assisti ao nascimento de um neto. Ou seriam dois? Ou três? Ou mais? Eram oito. Sim, eu tive oito netos. Mas quais eram seus nomes? Não sei. Mas eu tive filhos para poder ter netos? Não sei. Quem, afinal, estaria ali a me chamar de “vó”?

A voz que insistia em me chamar de “vó” foi ficando cada vez mais fraca, talvez porque o vozeirão de meu pai a abafasse. Ele insistia para que eu voltasse logo para casa, a fim de ajudar minha mãe com os afazeres domésticos. Mas como eu queria mesmo era ficar na rua com as outras crianças, eu peguei o primeiro navio que passou pela ilha. Deixei minha casa de pedra e atravessei muita água, até chegar num lugar muito quente, tão quente que as pessoas falavam uma língua estranha e viravam carvão. Eu recolhi vários pedaços de carvão pelas ruas de terra desse lugar. Quando encostei num pedaço ainda quente, chorei muito e meu pai me pegou pela mão. “Nista zato”, ele disse. E realmente não teve importância. Mas agora não sei mais onde está meu pai pra me dizer que as coisas dessa vida não importam.

“Dobro jutro”, alguém diz. Meu pai? Minha mãe? Uma tia? Na ilha é preciso dar “bom dia” a todos, principalmente para Tetà Danitsa, que me bate forte cada vez que esqueço de cumprimentá-la. Minha perna dói muito quando ela me bate desse jeito. Mas agora não vou dar “bom dia” pra ninguém e vou correr muito pra fugir da minha tia, tanto que vou chegar no fim da ilha e comer muitas frutas, principalmente as uvas. É tanta uva na ilha que o mar chega a ficar vermelho, como os círculos que agora estão à minha frente, se movendo de um lado para outro, abrindo e fechando suas próprias circunferências: vermelhos, azuis e amarelos. Amarelos e azuis como o Sol e as estrelas que brilham lá fora.

“Mãe? Mãe, você me ouve?”. Será pra mim essa pergunta? Sim, estou me lembrando de que tive um filho uma vez. Dois. Três. Sim, eu tive três filhos. Mas eu tive netos? Não sei. Mas onde está a minha mãe? Deve estar chorando ao longe, esperando meu pai voltar da guerra também chorando porque matou um homem que ele nunca tinha visto. Na guerra é assim, a gente aprende: quem não mata, morre. E nós não queremos que papai morra, pois ele ainda tem muita história pra nos contar. Ele ainda tem que nos levar embora da ilha onde homens que nunca vimos soltam bombas em nossas casas. Eu e meus irmãos cavamos um buraco pra fugir da morte, que vem nos visitar todos os dias, mas a gente a manda embora e ela vai dizendo “outro dia eu volto”.

“E então? Já está pronta pra ir?”, a morte me perguntou, mas eu não estava mais no buraco e não respondi. Ela não insistiu. Parece que ela já levou meu irmão, mas eu não tenho certeza porque não estava lá. Mas eu tive irmãos? Não sei. Talvez um, talvez mais.

“Tchau, mãe. Zbogo”. Deve ser pra mim, mas não sei se tenho filhos.

“Zbogo”, eu digo para quem quer que seja.

A viagem de Olívio

Girou a chave com as mãos trêmulas, como nunca havia feito antes. Há cinqüenta anos fazia, todos os dias, esse movimento de fechar a porta da frente de sua casa, mas do modo como a fechava hoje era a primeira vez.


Depois de girar a chave, resolveu voltá-la para o sentido contrário, a fim de verificar o interior da casa mais uma vez. A sala estava na mais perfeita ordem, com todos os objetos nos seus devidos lugares. Na estante, faltava apenas o seu livro preferido, Dom Casmurro, livro esse que o acompanhou por todos os dias de sua vida desde a adolescência. Adentrou a cozinha: estava tão organizada, limpa e brilhante, que se Olívio não tivesse feito ali todas as suas refeições nos últimos cinqüenta anos, poderia jurar que nunca havia sido usada.

Da cozinha passou para o quarto e viu sua cama arrumada, o abajur sobre o criado-mudo com a luz apagada, os ponteiros do relógio ainda marcando as horas e o guarda-roupa com as portas trancadas. Tudo como sempre esteve.

No banheiro, deteve-se por alguns minutos na frente do espelho. Quem era aquele homem ali refletido? Naquele espelho ele havia se olhado todos os dias, mas agora não sabia de quem era aquele reflexo. Olhando para o banheiro, teve a sensação de que nunca alguém estivera ali.

Por fim, olhou para o quintal, coberto de concreto em sua maior parte, e para o pequeno canteiro no qual cultivava alguns pés de alface, couve e repolho.

Verificou então que todas as luzes da casa estavam apagadas, o gás desligado, as portas e janelas fechadas. Voltou para a porta da frente e girou a chave não uma, mas duas vezes, para ter certeza de que a casa ficaria bem guardada durante sua ausência.

Sua bagagem consistia em uma mala antiga, que ele havia usado apenas uma vez, quando levou uma turma de alunos para passar o dia na praia. A primeira e única vez, aliás, em que Olívio viu o mar. Dentro da mala, os três ternos que possuía, um preto, um marrom e um cinza, três camisas brancas, todas as suas poucas roupas íntimas, dois pijamas de flanela, três pares de meias e seu livro preferido.

Além da mala, carregava a tartaruga Dorotéia numa caixa de papelão, dentro da qual colocou algumas folhas de alface, couve e repolho. Olívio não sabia de onde Dorotéia viera, já que era herança dos antigos moradores da casa, mas de qualquer maneira a pequena tartaruga acabou sendo sua única e verdadeira companhia viva nesses cinqüenta anos.

A princípio teve dúvidas sobre levar Dorotéia para essa viagem, pois temia que tirá-la do único lugar que ela conheceu em toda sua vida (era o que Olívio ao menos supunha) pudesse lhe causar um mal irreparável, mas depois de muito pensar chegou à conclusão de que um pouco de mundo não faz mal a ninguém. Talvez mais valesse apenas um dia vivo solto no mundo do que um século vivo entre as mesmas paredes. E resolveu que iriam.

Para completar a bagagem, carregava o mapa, o verdadeiro motivador de sua viagem.

No primeiro dia em que viu o mapa dobrado na sua caixa de correio, Olívio teve certeza de que se tratava de um engano. Como não tinha ordenado mapa algum e não era dado a bisbilhotar coisas alheias, deixou o mapa ali onde estava. Após uma semana, como o mapa continuava no mesmo lugar, resolveu colocá-lo do lado de fora da caixa de correio, sobre a mureta, a fim de que pudesse ser visto pela vizinhança. Para protegê-lo das intempéries, embrulhou-o com um saco plástico transparente. Agora o mapa poderia ser encontrado por seu dono. Mas outra semana se passou com o mapa no mesmo lugar.

Olívio resolveu então jogá-lo no lixo. Estava farto daquele intruso em sua vida. Tirou o mapa calmamente de cima da mureta, olhou para os lados apreensivo, à procura dos vizinhos, e como não encontrou nenhum, adentrou a casa com o mapa nas mãos, agarrado ao peito, com o mesmo cuidado com o qual carregaria um filhote ferido.

Foi direto para a cozinha e colocou o mapa sobre a mesa na qual fazia suas refeições. Resolveu não jogá-lo naquele momento. Talvez seu dono ainda tocasse a campainha. Decidiu esperar.

Passou mais uma semana olhando para aquele mapa dobrado dentro do saco plástico. Agora já o olhava com muita curiosidade, a qual foi se transformando numa imensa vontade de abri-lo. Mas o mapa não lhe pertencia e ficou ali, como uma companhia. Como Dorotéia. E assim passaram-se os dias, as semanas, os meses.

Agora o mapa já era parte de sua casa e de sua vida. Olívio já pertencia ao mapa. Desse sentimento de posse para sua abertura foi apenas um passo.

Embora agora já estivesse acostumado ao mapa, e sentisse que pertencessem um ao outro, não foi sem excitação que ele o tirou da proteção que ele mesmo lhe dera. Seu coração de setenta anos, acostumado a viver sem sobressaltos, batia como o de uma criança na véspera do Natal.

Ao segurar o mapa desprotegido e sentir sua textura entre seus dedos magros, percebeu que suas mãos tremiam levemente. Ficou assustado com essa sensação que experimentava pela primeira vez, mas agora não podia mais parar.

Abriu o mapa sobre a mesa da cozinha, correu para o quarto buscar a lupa que guardava na gaveta do criado-mudo e voltou para desbravá-lo.

Não era um mapa muito grande e parecia feito à mão. Havia um xis vermelho indicando o ponto de partida: Rua da Boa Esperança, nº 58. Rua da Boa Esperança, nº 58? Não podia ser, pensou Olívio. Rua da Boa Esperança, nº 58, era o endereço da casa em que morava há cinqüenta anos. Era o endereço do lugar de onde nunca pensou em sair.

Como se estivesse lendo um de seus livros, seguiu com os olhos o caminho tracejado de vermelho que apontava para o norte da Rua da Boa Esperança. De acordo com o mapa, Olívio (seria ele mesmo?) deveria seguir por quinze quilômetros em direção ao norte, quando então chegaria a um bosque. Um bosque?, estranhou Olívio. Nunca soube que havia um bosque nas redondezas, mas também lembrou-se de que nunca havia ido para o norte. A escola em que lecionou durante toda a sua vida profissional ficava ao sul, assim como a mercearia, o açougue, a farmácia, o alfaiate e a biblioteca. Teve apenas um amigo a quem visitava, professor de história na mesma escola em que ensinara literatura, mas esse único e bom amigo morava a leste de sua casa e já havia partido há tempo suficiente para que ele se acostumasse com sua falta. A verdade é que nunca havia parado pra pensar na existência de um norte.

De acordo com o mapa, após esse bosque haveria um deserto (um deserto? Ao norte de sua casa? Após um bosque?) e bem no meio do nada um outro xis vermelho indicava o ponto de chegada.

Após estudar esse mapa cuidadosamente, Olívio não conseguiu dormir. Por dias. Pensava no mapa, no bosque, no deserto, na sua casa, na sua escola, em Dorotéia, na vida que viveu sem paixão.

E numa manhã acordou com a mala e a nova casa de Dorotéia prontas.

Depois de girar a chave por duas vezes, carregou a mala, o mapa e Dorotéia até o carro que havia comprado trinta anos atrás para uma eventual emergência que nunca ocorreu. Apenas para não deixar o motor morrer, dava uma volta diária com o carro pelo quarteirão. A viagem mais longa do veículo foi a vez em que foi emprestado para o amigo professor de história, quando este precisou visitar o irmão moribundo. Agora estava pronto para a segunda.

Olívio abriu a porta do passageiro calmamente, encaixou no banco a caixa com Dorotéia, de maneira que ela não tombasse numa curva qualquer; fechou a porta, deu a volta por trás do veículo, sem conseguir pensar no que estava fazendo; abriu a porta do motorista também calmamente, colocou o mapa ao lado da caixa com Dorotéia e a mala no banco de trás; fechou e trancou a porta, colocou a chave no contato, pensou por alguns segundos e deu a partida. Ouviu o alegre ronco do motor, ansioso por viver pelo menos um dia diferente dos outros.

Partiram para o norte. Levaram quarenta minutos para percorrer os quinze quilômetros até o bosque. Durante o percurso, poucas casas e muito verde. Ao longe, podia-se avistar montanhas verdes brilhantes e se Olívio afastasse bem a vista poderia enxergar cachoeiras que derramavam cristalinas espumas. Dorotéia estava muito bem segura dentro da caixa presa ao banco do carro, mas não pôde resistir à paisagem lá fora e a todo custo tentava se equilibrar sobre as patas traseiras para tentar enxergar um mínimo que fosse de todo aquele verde, azul e branco.

A estrada era pouco asfaltada, a maior parte era de terra e pedras. Seguiram nesse caminho até que, exatamente após quinze quilômetros, com o sol da manhã ainda dourando toda a paisagem, a estrada terminou no bosque mostrado pelo mapa. Havia uma placa de madeira na entrada do bosque, na qual se podia ler “Seja bem-vindo, Olívio”.

Há quanto tempo aquela placa estaria ali? Quem a colocou? Como sabia que ele viria?

Saiu do carro trôpego, passou as mãos pela placa para ver se era de verdade. Era. Podia sentir as nervuras da madeira. A mensagem de boas vindas fora entalhada com muito cuidado. Mas por quem?

Antes de entrar no bosque, foi até o carro buscar a mala, o mapa e Dorotéia. Encontrou a mala e a tartaruga, mas não o mapa. Procurou-o por todo o carro, mas não o encontrou. Não havia como tê-lo perdido. As janelas do carro estavam abertas, mas a velocidade não permitiria que ele simplesmente saísse voando.

De qualquer maneira, tinha o mapa em sua mente. Bastava atravessar o bosque, aparentemente em linha reta. Logo depois haveria um deserto e no meio deste o ponto de chegada. Não podia ser assim tão difícil.

Resolveu deixar o carro e seguir a pé, carregando a mala e Dorotéia em sua caixa.

Colocou o pé direito dentro do bosque: o primeiro passo. Depois o segundo, o terceiro, o quarto e então começou a andar mais seguro. A mata era fechada, não enxergava nada além de troncos dos mais variados tamanhos e formatos, e copas de árvores que juntas não permitiam uma visão do céu.

Olívio segurava a caixa com Dorotéia firmemente, mas isso não impediu que ela caísse de uma das suas mãos, o que deixou Olívio assustado e inseguro. Nunca havia pensado na possibilidade de ver Dorotéia machucada ou sem vida.

No entanto, Dorotéia, já em terra firme, firmou as patas no chão de terra do bosque e seguiu andando. Olívio seguiu ao seu lado.

O único barulho que podiam ouvir era o das águas serpenteando as montanhas, ainda que ali no bosque fechado nada pudessem ver. Dorotéia seguia em linha reta e Olívio atrás. Andaram não sabem por quanto tempo. Da vida animal, apenas algumas borboletas que voavam ao longe: roxas, douradas, vermelhas e alaranjadas. Algumas voavam em grupos, outras sozinhas.

Olívio sentiu a presença da fome, talvez já fosse meio-dia, e dividiu com Dorotéia uma folha de alface. Havia esquecido da provisão. Como não sabia para onde iria, achou que encontraria algum lugar onde comer. E achou.

Dorotéia aos poucos parou em frente a uma árvore, e quando Olívio resolveu olhar para sua copa à procura de um pedaço de céu, avistou enormes, vermelhas e suculentas maçãs, as quais ele nem mesmo teve o trabalho de colher, pois começaram a cair aos seus pés suavemente. Como não sabia se esse tipo de coisa poderia acontecer duas vezes, colocou as maçãs na caixa que pertencera a Dorotéia. Seguiram comendo até que o bosque simplesmente acabou. Assim como um muro ou uma parede, o bosque mostrou seu fim e deu lugar a um deserto.

Olívio não tinha idéia de onde estava. A paisagem agora era árida, plana e tudo o que enxergava era o horizonte e Olívio sabia que ir atrás do horizonte era um trabalho para muitas e muitas vidas. Começo a escurecer. Como ele encontraria o ponto de chegada num deserto escuro? Um ponto de chegada que ele nem mesmo sabia o que era?

Olhou para Dorotéia, que lhe disse para seguirem em frente. Foi exatamente o que fizeram. Já não podiam enxergar mais nada, apenas as estrelas no céu. Muitas estrelas. Tantas que Olívio achou que o céu iria cair. Apareciam cada vez mais e em maior número. Brilhavam com tal intensidade que a noite transformou-se em dia, o dia mais brilhante que Olívio já vira ou ouvira falar. Nunca, nem nas páginas dos livros mais fantásticos que lera, soubera que o céu poderia brilhar daquele jeito.

Por um momento o brilho das estrelas cegou seus olhos e ele se viu obrigado a fechá-los. Não havia como suportar. Quando os abriu de novo, não viu mais Dorotéia.

Olhou ao redor, com o coração a ponto de despedaçar, mas não a encontrava. Para onde poderia ter ido em poucos segundos? O céu de estrelas continuava brilhando, indiferente ao que se passava na terra.

Olívio não agüentou a dor e chorou. Verteu lágrimas como nunca havia feito antes, nem mesmo quando se viu sozinho no mundo pela primeira vez.

Sentado na areia fria do deserto, trêmulo de medo e arrependimento, Olívio chorava com tanta intensidade e tão centrado na sua dor que não pôde ver o lago que ele formava à sua frente. Um lago de águas doces e cristalinas. Só conseguiu enxergá-lo quando as águas tocaram seus pés.

Olívio parou de chorar com o susto. Ainda procurava por Dorotéia, mas já dividia a aflição da perda com o espanto do absurdo.

Havia formado um belo lago e levantou-se para observá-lo melhor. Fixou sua visão no fundo das águas claras. Não pôde acreditar no que viu logo no início. Olhou para o céu em busca de um sinal, mas logo voltou-se para o fundo do lago novamente: ali estava ela, a mulher com olhos de ressaca, o grande e único amor de sua vida, aquela pela qual Olívio suspirou todos os dias desde os seus quinze anos, a única mulher pela qual a vida e a morte valiam a pena.

Olívio finalmente havia entendido o sentido de sua vida e mergulhou, com o coração cheio de sonhos, para junto de Capitu. Sua Capitu.