terça-feira, 10 de julho de 2007

Delírio

A luz entrou muito lentamente.

Uma voz ao longe dizia “vó” e parecia me chamar, mas eu não sei se tive netos. Ah, sim, estou me lembrando: assisti ao nascimento de um neto. Ou seriam dois? Ou três? Ou mais? Eram oito. Sim, eu tive oito netos. Mas quais eram seus nomes? Não sei. Mas eu tive filhos para poder ter netos? Não sei. Quem, afinal, estaria ali a me chamar de “vó”?

A voz que insistia em me chamar de “vó” foi ficando cada vez mais fraca, talvez porque o vozeirão de meu pai a abafasse. Ele insistia para que eu voltasse logo para casa, a fim de ajudar minha mãe com os afazeres domésticos. Mas como eu queria mesmo era ficar na rua com as outras crianças, eu peguei o primeiro navio que passou pela ilha. Deixei minha casa de pedra e atravessei muita água, até chegar num lugar muito quente, tão quente que as pessoas falavam uma língua estranha e viravam carvão. Eu recolhi vários pedaços de carvão pelas ruas de terra desse lugar. Quando encostei num pedaço ainda quente, chorei muito e meu pai me pegou pela mão. “Nista zato”, ele disse. E realmente não teve importância. Mas agora não sei mais onde está meu pai pra me dizer que as coisas dessa vida não importam.

“Dobro jutro”, alguém diz. Meu pai? Minha mãe? Uma tia? Na ilha é preciso dar “bom dia” a todos, principalmente para Tetà Danitsa, que me bate forte cada vez que esqueço de cumprimentá-la. Minha perna dói muito quando ela me bate desse jeito. Mas agora não vou dar “bom dia” pra ninguém e vou correr muito pra fugir da minha tia, tanto que vou chegar no fim da ilha e comer muitas frutas, principalmente as uvas. É tanta uva na ilha que o mar chega a ficar vermelho, como os círculos que agora estão à minha frente, se movendo de um lado para outro, abrindo e fechando suas próprias circunferências: vermelhos, azuis e amarelos. Amarelos e azuis como o Sol e as estrelas que brilham lá fora.

“Mãe? Mãe, você me ouve?”. Será pra mim essa pergunta? Sim, estou me lembrando de que tive um filho uma vez. Dois. Três. Sim, eu tive três filhos. Mas eu tive netos? Não sei. Mas onde está a minha mãe? Deve estar chorando ao longe, esperando meu pai voltar da guerra também chorando porque matou um homem que ele nunca tinha visto. Na guerra é assim, a gente aprende: quem não mata, morre. E nós não queremos que papai morra, pois ele ainda tem muita história pra nos contar. Ele ainda tem que nos levar embora da ilha onde homens que nunca vimos soltam bombas em nossas casas. Eu e meus irmãos cavamos um buraco pra fugir da morte, que vem nos visitar todos os dias, mas a gente a manda embora e ela vai dizendo “outro dia eu volto”.

“E então? Já está pronta pra ir?”, a morte me perguntou, mas eu não estava mais no buraco e não respondi. Ela não insistiu. Parece que ela já levou meu irmão, mas eu não tenho certeza porque não estava lá. Mas eu tive irmãos? Não sei. Talvez um, talvez mais.

“Tchau, mãe. Zbogo”. Deve ser pra mim, mas não sei se tenho filhos.

“Zbogo”, eu digo para quem quer que seja.

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