terça-feira, 10 de julho de 2007

A viagem de Olívio

Girou a chave com as mãos trêmulas, como nunca havia feito antes. Há cinqüenta anos fazia, todos os dias, esse movimento de fechar a porta da frente de sua casa, mas do modo como a fechava hoje era a primeira vez.


Depois de girar a chave, resolveu voltá-la para o sentido contrário, a fim de verificar o interior da casa mais uma vez. A sala estava na mais perfeita ordem, com todos os objetos nos seus devidos lugares. Na estante, faltava apenas o seu livro preferido, Dom Casmurro, livro esse que o acompanhou por todos os dias de sua vida desde a adolescência. Adentrou a cozinha: estava tão organizada, limpa e brilhante, que se Olívio não tivesse feito ali todas as suas refeições nos últimos cinqüenta anos, poderia jurar que nunca havia sido usada.

Da cozinha passou para o quarto e viu sua cama arrumada, o abajur sobre o criado-mudo com a luz apagada, os ponteiros do relógio ainda marcando as horas e o guarda-roupa com as portas trancadas. Tudo como sempre esteve.

No banheiro, deteve-se por alguns minutos na frente do espelho. Quem era aquele homem ali refletido? Naquele espelho ele havia se olhado todos os dias, mas agora não sabia de quem era aquele reflexo. Olhando para o banheiro, teve a sensação de que nunca alguém estivera ali.

Por fim, olhou para o quintal, coberto de concreto em sua maior parte, e para o pequeno canteiro no qual cultivava alguns pés de alface, couve e repolho.

Verificou então que todas as luzes da casa estavam apagadas, o gás desligado, as portas e janelas fechadas. Voltou para a porta da frente e girou a chave não uma, mas duas vezes, para ter certeza de que a casa ficaria bem guardada durante sua ausência.

Sua bagagem consistia em uma mala antiga, que ele havia usado apenas uma vez, quando levou uma turma de alunos para passar o dia na praia. A primeira e única vez, aliás, em que Olívio viu o mar. Dentro da mala, os três ternos que possuía, um preto, um marrom e um cinza, três camisas brancas, todas as suas poucas roupas íntimas, dois pijamas de flanela, três pares de meias e seu livro preferido.

Além da mala, carregava a tartaruga Dorotéia numa caixa de papelão, dentro da qual colocou algumas folhas de alface, couve e repolho. Olívio não sabia de onde Dorotéia viera, já que era herança dos antigos moradores da casa, mas de qualquer maneira a pequena tartaruga acabou sendo sua única e verdadeira companhia viva nesses cinqüenta anos.

A princípio teve dúvidas sobre levar Dorotéia para essa viagem, pois temia que tirá-la do único lugar que ela conheceu em toda sua vida (era o que Olívio ao menos supunha) pudesse lhe causar um mal irreparável, mas depois de muito pensar chegou à conclusão de que um pouco de mundo não faz mal a ninguém. Talvez mais valesse apenas um dia vivo solto no mundo do que um século vivo entre as mesmas paredes. E resolveu que iriam.

Para completar a bagagem, carregava o mapa, o verdadeiro motivador de sua viagem.

No primeiro dia em que viu o mapa dobrado na sua caixa de correio, Olívio teve certeza de que se tratava de um engano. Como não tinha ordenado mapa algum e não era dado a bisbilhotar coisas alheias, deixou o mapa ali onde estava. Após uma semana, como o mapa continuava no mesmo lugar, resolveu colocá-lo do lado de fora da caixa de correio, sobre a mureta, a fim de que pudesse ser visto pela vizinhança. Para protegê-lo das intempéries, embrulhou-o com um saco plástico transparente. Agora o mapa poderia ser encontrado por seu dono. Mas outra semana se passou com o mapa no mesmo lugar.

Olívio resolveu então jogá-lo no lixo. Estava farto daquele intruso em sua vida. Tirou o mapa calmamente de cima da mureta, olhou para os lados apreensivo, à procura dos vizinhos, e como não encontrou nenhum, adentrou a casa com o mapa nas mãos, agarrado ao peito, com o mesmo cuidado com o qual carregaria um filhote ferido.

Foi direto para a cozinha e colocou o mapa sobre a mesa na qual fazia suas refeições. Resolveu não jogá-lo naquele momento. Talvez seu dono ainda tocasse a campainha. Decidiu esperar.

Passou mais uma semana olhando para aquele mapa dobrado dentro do saco plástico. Agora já o olhava com muita curiosidade, a qual foi se transformando numa imensa vontade de abri-lo. Mas o mapa não lhe pertencia e ficou ali, como uma companhia. Como Dorotéia. E assim passaram-se os dias, as semanas, os meses.

Agora o mapa já era parte de sua casa e de sua vida. Olívio já pertencia ao mapa. Desse sentimento de posse para sua abertura foi apenas um passo.

Embora agora já estivesse acostumado ao mapa, e sentisse que pertencessem um ao outro, não foi sem excitação que ele o tirou da proteção que ele mesmo lhe dera. Seu coração de setenta anos, acostumado a viver sem sobressaltos, batia como o de uma criança na véspera do Natal.

Ao segurar o mapa desprotegido e sentir sua textura entre seus dedos magros, percebeu que suas mãos tremiam levemente. Ficou assustado com essa sensação que experimentava pela primeira vez, mas agora não podia mais parar.

Abriu o mapa sobre a mesa da cozinha, correu para o quarto buscar a lupa que guardava na gaveta do criado-mudo e voltou para desbravá-lo.

Não era um mapa muito grande e parecia feito à mão. Havia um xis vermelho indicando o ponto de partida: Rua da Boa Esperança, nº 58. Rua da Boa Esperança, nº 58? Não podia ser, pensou Olívio. Rua da Boa Esperança, nº 58, era o endereço da casa em que morava há cinqüenta anos. Era o endereço do lugar de onde nunca pensou em sair.

Como se estivesse lendo um de seus livros, seguiu com os olhos o caminho tracejado de vermelho que apontava para o norte da Rua da Boa Esperança. De acordo com o mapa, Olívio (seria ele mesmo?) deveria seguir por quinze quilômetros em direção ao norte, quando então chegaria a um bosque. Um bosque?, estranhou Olívio. Nunca soube que havia um bosque nas redondezas, mas também lembrou-se de que nunca havia ido para o norte. A escola em que lecionou durante toda a sua vida profissional ficava ao sul, assim como a mercearia, o açougue, a farmácia, o alfaiate e a biblioteca. Teve apenas um amigo a quem visitava, professor de história na mesma escola em que ensinara literatura, mas esse único e bom amigo morava a leste de sua casa e já havia partido há tempo suficiente para que ele se acostumasse com sua falta. A verdade é que nunca havia parado pra pensar na existência de um norte.

De acordo com o mapa, após esse bosque haveria um deserto (um deserto? Ao norte de sua casa? Após um bosque?) e bem no meio do nada um outro xis vermelho indicava o ponto de chegada.

Após estudar esse mapa cuidadosamente, Olívio não conseguiu dormir. Por dias. Pensava no mapa, no bosque, no deserto, na sua casa, na sua escola, em Dorotéia, na vida que viveu sem paixão.

E numa manhã acordou com a mala e a nova casa de Dorotéia prontas.

Depois de girar a chave por duas vezes, carregou a mala, o mapa e Dorotéia até o carro que havia comprado trinta anos atrás para uma eventual emergência que nunca ocorreu. Apenas para não deixar o motor morrer, dava uma volta diária com o carro pelo quarteirão. A viagem mais longa do veículo foi a vez em que foi emprestado para o amigo professor de história, quando este precisou visitar o irmão moribundo. Agora estava pronto para a segunda.

Olívio abriu a porta do passageiro calmamente, encaixou no banco a caixa com Dorotéia, de maneira que ela não tombasse numa curva qualquer; fechou a porta, deu a volta por trás do veículo, sem conseguir pensar no que estava fazendo; abriu a porta do motorista também calmamente, colocou o mapa ao lado da caixa com Dorotéia e a mala no banco de trás; fechou e trancou a porta, colocou a chave no contato, pensou por alguns segundos e deu a partida. Ouviu o alegre ronco do motor, ansioso por viver pelo menos um dia diferente dos outros.

Partiram para o norte. Levaram quarenta minutos para percorrer os quinze quilômetros até o bosque. Durante o percurso, poucas casas e muito verde. Ao longe, podia-se avistar montanhas verdes brilhantes e se Olívio afastasse bem a vista poderia enxergar cachoeiras que derramavam cristalinas espumas. Dorotéia estava muito bem segura dentro da caixa presa ao banco do carro, mas não pôde resistir à paisagem lá fora e a todo custo tentava se equilibrar sobre as patas traseiras para tentar enxergar um mínimo que fosse de todo aquele verde, azul e branco.

A estrada era pouco asfaltada, a maior parte era de terra e pedras. Seguiram nesse caminho até que, exatamente após quinze quilômetros, com o sol da manhã ainda dourando toda a paisagem, a estrada terminou no bosque mostrado pelo mapa. Havia uma placa de madeira na entrada do bosque, na qual se podia ler “Seja bem-vindo, Olívio”.

Há quanto tempo aquela placa estaria ali? Quem a colocou? Como sabia que ele viria?

Saiu do carro trôpego, passou as mãos pela placa para ver se era de verdade. Era. Podia sentir as nervuras da madeira. A mensagem de boas vindas fora entalhada com muito cuidado. Mas por quem?

Antes de entrar no bosque, foi até o carro buscar a mala, o mapa e Dorotéia. Encontrou a mala e a tartaruga, mas não o mapa. Procurou-o por todo o carro, mas não o encontrou. Não havia como tê-lo perdido. As janelas do carro estavam abertas, mas a velocidade não permitiria que ele simplesmente saísse voando.

De qualquer maneira, tinha o mapa em sua mente. Bastava atravessar o bosque, aparentemente em linha reta. Logo depois haveria um deserto e no meio deste o ponto de chegada. Não podia ser assim tão difícil.

Resolveu deixar o carro e seguir a pé, carregando a mala e Dorotéia em sua caixa.

Colocou o pé direito dentro do bosque: o primeiro passo. Depois o segundo, o terceiro, o quarto e então começou a andar mais seguro. A mata era fechada, não enxergava nada além de troncos dos mais variados tamanhos e formatos, e copas de árvores que juntas não permitiam uma visão do céu.

Olívio segurava a caixa com Dorotéia firmemente, mas isso não impediu que ela caísse de uma das suas mãos, o que deixou Olívio assustado e inseguro. Nunca havia pensado na possibilidade de ver Dorotéia machucada ou sem vida.

No entanto, Dorotéia, já em terra firme, firmou as patas no chão de terra do bosque e seguiu andando. Olívio seguiu ao seu lado.

O único barulho que podiam ouvir era o das águas serpenteando as montanhas, ainda que ali no bosque fechado nada pudessem ver. Dorotéia seguia em linha reta e Olívio atrás. Andaram não sabem por quanto tempo. Da vida animal, apenas algumas borboletas que voavam ao longe: roxas, douradas, vermelhas e alaranjadas. Algumas voavam em grupos, outras sozinhas.

Olívio sentiu a presença da fome, talvez já fosse meio-dia, e dividiu com Dorotéia uma folha de alface. Havia esquecido da provisão. Como não sabia para onde iria, achou que encontraria algum lugar onde comer. E achou.

Dorotéia aos poucos parou em frente a uma árvore, e quando Olívio resolveu olhar para sua copa à procura de um pedaço de céu, avistou enormes, vermelhas e suculentas maçãs, as quais ele nem mesmo teve o trabalho de colher, pois começaram a cair aos seus pés suavemente. Como não sabia se esse tipo de coisa poderia acontecer duas vezes, colocou as maçãs na caixa que pertencera a Dorotéia. Seguiram comendo até que o bosque simplesmente acabou. Assim como um muro ou uma parede, o bosque mostrou seu fim e deu lugar a um deserto.

Olívio não tinha idéia de onde estava. A paisagem agora era árida, plana e tudo o que enxergava era o horizonte e Olívio sabia que ir atrás do horizonte era um trabalho para muitas e muitas vidas. Começo a escurecer. Como ele encontraria o ponto de chegada num deserto escuro? Um ponto de chegada que ele nem mesmo sabia o que era?

Olhou para Dorotéia, que lhe disse para seguirem em frente. Foi exatamente o que fizeram. Já não podiam enxergar mais nada, apenas as estrelas no céu. Muitas estrelas. Tantas que Olívio achou que o céu iria cair. Apareciam cada vez mais e em maior número. Brilhavam com tal intensidade que a noite transformou-se em dia, o dia mais brilhante que Olívio já vira ou ouvira falar. Nunca, nem nas páginas dos livros mais fantásticos que lera, soubera que o céu poderia brilhar daquele jeito.

Por um momento o brilho das estrelas cegou seus olhos e ele se viu obrigado a fechá-los. Não havia como suportar. Quando os abriu de novo, não viu mais Dorotéia.

Olhou ao redor, com o coração a ponto de despedaçar, mas não a encontrava. Para onde poderia ter ido em poucos segundos? O céu de estrelas continuava brilhando, indiferente ao que se passava na terra.

Olívio não agüentou a dor e chorou. Verteu lágrimas como nunca havia feito antes, nem mesmo quando se viu sozinho no mundo pela primeira vez.

Sentado na areia fria do deserto, trêmulo de medo e arrependimento, Olívio chorava com tanta intensidade e tão centrado na sua dor que não pôde ver o lago que ele formava à sua frente. Um lago de águas doces e cristalinas. Só conseguiu enxergá-lo quando as águas tocaram seus pés.

Olívio parou de chorar com o susto. Ainda procurava por Dorotéia, mas já dividia a aflição da perda com o espanto do absurdo.

Havia formado um belo lago e levantou-se para observá-lo melhor. Fixou sua visão no fundo das águas claras. Não pôde acreditar no que viu logo no início. Olhou para o céu em busca de um sinal, mas logo voltou-se para o fundo do lago novamente: ali estava ela, a mulher com olhos de ressaca, o grande e único amor de sua vida, aquela pela qual Olívio suspirou todos os dias desde os seus quinze anos, a única mulher pela qual a vida e a morte valiam a pena.

Olívio finalmente havia entendido o sentido de sua vida e mergulhou, com o coração cheio de sonhos, para junto de Capitu. Sua Capitu.

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