quarta-feira, 18 de julho de 2007

Abigail*

Era uma vez um reino muito distante e numa bela manhã de inverno nasceu uma linda princesinha. O rei e a rainha estavam muito felizes com o nascimento da adorada menininha e resolveram chamá-la de Abigail.

No dia em que Abigail nasceu tudo o que se podia ver através das janelas do castelo eram os campos cobertos de neve, mas os corações dos pais da bela princesa queimavam de tanto amor.

Mas nem todos no reino estavam felizes nesse dia. No momento em que a rainha ia segurar sua filhinha pela primeira vez, a abominável Malvina entrou pelo quarto, soltando uma de suas risadas estridentes, e disse:

- Eu avisei, minha cara rainha, que você nunca seria feliz com esse rei e hoje estou aqui para cumprir minha promessa. Seus corações podem arder de alegria nesse momento, mas eu condeno a pequena Abigail a viver, para todo o sempre, com um coração de gelo, tão frio quanto a neve que podemos avistar lá fora. E toda vez que esse coração ficar triste, ele derreterá aos poucos, como a neve na primavera, e nossa pequena Abigail morrerá triste e lentamente.

E assim como veio, Malvina foi embora.

A rainha nesse momento derramou todo o seu pranto. Quando jovem, Malvina era uma bela moça e disputou com a rainha o coração do rei, mas como esse não a escolheu, ela jurou que nunca deixaria os dois serem felizes. Era chegado o momento da vingança.

Passado o desespero, os pais da princesinha mandaram buscar a bondosa Osmilda, fada-madrinha de Abigail, pois era preciso agir.

Osmilda chegou esbaforida no seu vestido de seda verde. Rodopiou por todo o quarto com sua varinha, dizendo palavras mágicas que pudessem quebrar o feitiço de Malvina, mas parece que todo esse esforço foi em vão. Quando colocavam a mão sobre o peito da princesinha, o coração continuava gelado.

- Enquanto não descobrirmos o remédio, o jeito vai ser cuidar muito bem desse coraçãozinho, disse Osmilda, e tenham a certeza de que eu estarei sempre por perto. E depois de beijar as faces brancas de Abigail, Osmilda saiu dando piruetas pelo ar.

O rei e a rainha resolveram que a partir daquele dia Abigail não poderia sofrer nenhuma decepção, mas para que isso acontecesse, ela nunca poderia ultrapassar os muros do castelo. Ordens expressas foram dadas aos guardas que vigiavam todas as saídas: Abigail nunca, jamais, poderia sair de lá. E todos fariam o possível e o impossível para que ela fosse sempre feliz.

E assim Abigail cresceu. Todos os seus desejos eram realizados: se ela queria comer morangos gigantes cultivados no distante Reino das Frutas, o rei ordenava que alguém fosse buscá-los. Se ela queria um céu estrelado, a rainha ordenava que todas as fadas do reino iluminassem o céu escuro com suas varinhas.

No seu aniversário de cinco anos, Abigail queria usar um vestido com as cores do arco-íris feito por bichos da seda que habitavam o longínquo Reino dos Bichos e assim foi feito. Quando chovia e Abigail queria brincar nos campos do castelo, a fada Osmilda cobria o céu com imensos guarda-chuvas coloridos e nenhuma gota d’água atrapalhava a brincadeira da princesinha.

Mas o tempo foi passando, passando, e Abigail, agora uma bela moça com lindos cabelos negros cacheados, começou a se interessar pelo outro lado do muro do castelo. A vontade de saber o que havia escondido lá era tão grande que ela não conseguia pensar em outra coisa. Mas para cada um que ela perguntava, ouvia um “não há nada do outro lado” como resposta. Se não havia nada, por que ela não poderia ver?, ela se questionava.

Um dia, então, ela decidiu que iria ultrapassar os muros do castelo, a qualquer custo. Na hora do lanche dos guardas, ela se ofereceu para entregar-lhes os copos com suco de tutti frutti e despejou em cada um deles quantidades enormes de sonífero. Assim que a noite caiu, enquanto os guardas roncavam, Abigail desceu pela janela de seu quarto e muito cuidadosamente ultrapassou os muros que guardavam um segredo do outro lado.

Era a primeira vez que Abigail se via sozinha em algum lugar e, assustada, resolveu esperar embaixo de uma acolhedora árvore que o dia clareasse.

Com os primeiros raios de sol, Abigail se pôs a andar. Ficou maravilhada com o que viu: campos verdes com lindas flores e árvores frondosas. O céu parecia até mais azul do lado de fora. Ao longe Abigail pôde avistar um conjunto de pequeninas casas e resolveu que iria até lá.

No caminho, porém, Abigail foi detida pelo mais belo canto que jamais havia ouvido. A bela princesa gostava muito de música e para contentá-la seus pais traziam para o castelo cantores e cantoras de todos os lugares do mundo, uma voz mais bela que a outra, mas nada se comparava à que ela ouvia agora.

A jovem ficou hipnotizada, mas não conseguia descobrir de onde vinha aquele canto. Apurou bem os ouvidos e viu, no alto de uma árvore, o dono daquela linda voz: um enorme pássaro de penas negras brilhantes e olhos dourados que mais pareciam duas estrelas.

Abigail se apaixonou pelo pássaro e não sabia como fazer para tê-lo junto de si. O que ela também não sabia é que o rei e a rainha, ao notarem pela manhã o sumiço da filha, colocaram todos os guardas do reino e também dos reinos vizinhos à sua procura. E bem no momento em que Abigail admirava o pássaro no alto da árvore os guardas chegaram. A princesa olhou para os guardas se aproximando e disse:

- Peguem esse pássaro. Agora!

Um dos guardas, no mesmo segundo, jogou por cima do pobre animal uma grande rede, da qual o bichinho não conseguiu se desvencilhar. E assim Abigail voltou para o castelo: seguida pelos guardas e carregando seu mais novo bibelô.

O rei a rainha estavam furiosos com a fuga da filha, mas quando a viram voltando sã e salva, apenas correram abraçá-la. Nenhuma palavra foi dita.

Abigail, então, que nunca soube o que era uma bronca, mostrou para os pais sua mais nova aquisição: um belo pássaro dono de uma linda voz.

A princesa pediu uma gaiola e logo seu desejo foi atendido. O bichinho assustado foi colocado lá dentro e Abigail disse:

- Cante!

Mas nem um piu foi ouvido.

- Cante!, Abigail disse mais alto.

E nada.

- Cante, agora!, Abigail já disse esbravejando e roxa de raiva.


Os pais da princesa, preocupados com essa emoção toda, convidaram a filha para um lanche e sugeriram que voltassem para o pássaro no dia seguinte.

Logo pela manhã, Abigail correu para a gaiola e ordenou que o pássaro cantasse novamente, mas ele nem se mexeu.

Furiosa com aquela desobediência, a bela princesa chamou os guardas e disse:


- Matem esse pássaro. Já!


O pobre animal arregalou seus olhos dourados que agora já não brilhavam mais como as estrelas. Os guardas não acreditavam na crueldade da princesa, mas tinham que obedecer às suas ordens.

Abriram a porta da gaiola, pegaram o bichinho assustado e quando iam lhe desferir um golpe certeiro na cabecinha negra, uma lágrima clara escorreu de seus olhos dourados.

Abigail, que assistia à cena impassível, no instante em que viu a lágrima, num reflexo colocou suas mãos sobre o bichinho. Abigail nunca tinha chorado na vida e era a primeira vez que via uma lágrima cair tão silenciosamente.

E enquanto suas mãos tocavam as penas negras sedosas, um calor passou a tomar conta do corpo de Abigail e a princesa começou a sentir algo palpitando em seu peito, mas uma palpitação tão forte que a jovem se pôs a chorar de medo. Parecia que ia explodir.

O rei e a rainha, ao escutarem o choro da filha, correram desesperados para tentar impedir que aquilo acontecesse, mas agora já era tarde demais.

Colocaram suas mãos sobre o peito da princesa, a fim de descobrir se o coraçãozinho de gelo estava mesmo derretendo, mas o que sentiram foi um forte, grande e quente coração pulando de emoção. Abigail agora já chorava de emoção, pois pela primeira vez sentia-se realmente viva, e achava que não havia melhor sensação do que esta que ora sentia.

A princesa, com os olhos banhados em lágrimas, tirou suas mãos de cima do pobre passarinho e disse:

- Vá!

O belo animal imediatamente voou o mais alto que pôde, a ponto de sumir da vista de todos. Abigail não pôde deixar de sentir uma certa tristeza ao ver o pássaro partindo, mas sabia, do fundo do seu coração agora quente, que ele não lhe pertencia.

Osmilda, que a tudo assistiu, consolou sua querida afilhada e mostrou-se a mais orgulhosa de todas as fadas-madrinhas. Na hora de partir, rodopiou por todo o reino e ao som de suas palavras mágicas os tijolos do muro do castelo foram caindo um a um. Abigail agora estava livre para conhecer o outro lado. Todos os lados que desejasse.

No dia seguinte, quando Abigail faria seu primeiro passeio de verdade, a princesa acordou com o canto do pássaro, antes mesmo do raiar do sol. Ficara tão apaixonada por aquele som que até sonhava com ele, pensou. Mas ao abrir bem os olhos pôde ver, ali na sua janela, o lindo animal com seus olhos de estrelas brilhantes cantando apenas para ela. Ao terminar sua bela canção, voou novamente até sumir. Mas voltou no dia seguinte, e no seguinte e no seguinte e no seguinte e sempre.


* exercício de conto de fadas.

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